



UM SOLO SOBRE AMOR, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA
Primavera Cega nasce de lembranças pessoais autoficcionadas e entrelaçadas a um evento trágico e real. A peça mergulha na relação entre mãe e filho ao longo de três décadas, acompanhando os laços de afeto, os silêncios impostos e as rupturas que ecoam para além do tempo. Neste percurso, a narrativa atravessa temas como a homofobia, o machismo e a Doença de Alzheimer – que se manifestam de diferentes formas, moldando personalidades, apagando histórias e deixando marcas.
A partir do olhar desse filho, Primavera Cega investiga como os padrões herdados da família – e reforçados pela sociedade – se enraízam na identidade pessoal. Histórias não contadas, medos silenciados e afetos interrompidos tornam-se heranças invisíveis. O que não é falado se infiltra nos gestos, nas ausências, nos ciclos que se repetem. O que foi vivido pela mãe ressoa no filho, e suas experiências se entrelaçam como um espelho que reflete não apenas um vínculo familiar, mas a permanência estrutural de diversos tipos de violência.
Ao transitar entre lembranças reais e inventadas, Primavera Cega é um convite à reflexão sobre a força dos laços afetivos e os impactos do preconceito e da intolerância, que atravessam o tempo. Mais do que um resgate de memórias, é uma viagem interior que confronta o protagonista – e o público – com os fantasmas do passado e os limites que ele impõe ao presente.


HOMOFOBIA E AS MARCAS DA INTOLERÂNCIA
O Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas LGBTQIAPN+ no mundo. Em 2024, segundo o Grupo Gay da Bahia – a mais antiga organização não governamental da causa na América Latina – foram 291 vítimas com mortes violentas em território nacional. A homofobia não é um desvio isolado de caráter ou uma falha individual, mas uma consequência direta de uma sociedade que normaliza a violência contra corpos dissidentes e sustenta estruturas que perpetuam o preconceito, a discriminação e a brutalidade. Essa violência não apenas fere e mata, mas também priva as vítimas de direitos fundamentais, como o de existir plenamente e de amar sem medo. Em Primavera Cega, a homofobia se manifesta como um ato irreversível, para além da violência física, que interrompe um momento sagrado e humano: a despedida.

MACHISMO ESTRUTURAL E SUAS IMPLICAÇÕES
A homofobia é uma das faces mais cruéis do machismo, um sistema que desvaloriza tudo o que se associa ao feminino e impõe um modelo rígido de masculinidade baseado na força, na negação da vulnerabilidade e na violência. Essa cultura opressora molda relações desde a infância, estabelecendo padrões rígidos dentro da família, da escola e, de maneira ainda mais incisiva, em cidades interioranas, onde qualquer desvio do que é considerado “normal” é visto como uma ameaça, algo a ser silenciado, excluído ou exterminado. O espetáculo investiga como esse modelo sufoca existências, impõe o medo e transforma o diferente em alvo. E se engana quem pensa que a homofobia atinge apenas a comunidade LGBTQIAPN+: ela afeta mulheres, crianças e qualquer identidade que se desvie da norma estabelecida, mantendo uma estrutura social que se sustenta sobre a anulação das diferenças.

O ALZHEIMER E A FRAGILIDADE DA MEMÓRIA

A Doença de Alzheimer, além de seus desafios no âmbito familiar, traz também reflexões sobre o esquecimento. Em um mundo onde certas memórias são deliberadamente apagadas, sejam elas individuais ou coletivas, a peça reflete sobre o que significa perder recordações. É como se o Alzheimer carregasse um terrível paradoxo: ao mesmo tempo que dissolve identidades e histórias, pode representar uma espécie de alívio para quem teve uma vida de dor e privações. Em Primavera Cega, a mãe – após décadas de submissão, de trabalho não reconhecido e momentos de solidão e sofrimento – começa a se esquecer. Esquece as mágoas, os abusos silenciosos, os episódios de tristeza profunda. Se por um lado o esquecimento a desconecta do presente, por outro, também a liberta das marcas de uma vida atravessada por tantas dores. Já o filho busca lembrar: da infância, da relação com o pai, de momentos apagados de sua história. O espetáculo reflete ainda sobre como a perda da memória individual dialoga com apagamentos sociais e históricos mais amplos, nos fazendo questionar o que escolhemos lembrar, o que preferimos esquecer e quais memórias são sistematicamente silenciadas ao longo do tempo.

FICHA TÉCNICA
dramaturgia e atuação
direção
figurino
design de luz
trilha sonora
operação
provocação dramatúrgica
idealização
figurino
fotografia
identidade visual
parceria
apoio

PRIMAVERA CEGA
Igor Iatcekiw
Alejandra Sampaio
Malú BazÁn
MARCELO LEÃO
Adriana Dham
Bruno Menegatti
TAIGUARA CHAGAS
Denio Maués
Kiko Marques
Alejandra Sampaio
Igor Ludac e
Malú BazÁn
Marcelo Leão
Nelson Kao
CRISTINA CAVALCANTI
JIBOIA ESTúDIO
Associação Zona Franca
The Dog Resort
Jiboia Estúdio

EQUIPE CRIATIVA

GALERIA
fotos
nelson Kao

PROCESSO DE CRIAÇÃO
A pesquisa e o desenvolvimento deste trabalho passaram por diferentes momentos de experimentação, desde a escrita inicial até a materialização no palco. Um trabalho quase artesanal. O espetáculo foi moldado por encontros e colaborações fundamentais, que emprestaram seus olhares e sensibilidades para dar corpo à obra. Oficinas, assessorias dramatúrgicas e imersões artísticas fizeram parte desse processo, tornando evidente que o fazer teatral é sempre coletivo, mesmo quando o palco é ocupado por um único ator.
Primavera Cega nasceu em 2016 como um poema, escrito pelo próprio autor, e foi se transformando ao longo dos anos. O projeto teatral começou a ganhar corpo em 2018, quando o autor se encontrou com a atriz e diretora Alejandra Sampaio na Associação Cultural Zona Franca, em São Paulo. A partir desse momento, os primeiros textos foram investigados para experimentação cênica, já com a assessoria dramatúrgica do ator, diretor e dramaturgo Kiko Marques.
Em 2019, a participação na oficina Da Ideia à Cena, orientada pela atriz e diretora Malú Bazán, possibilitou novas experimentações compartilhadas com outros artistas. Nos anos seguintes, o processo seguiu em constante transformação. Durante a pandemia (2020/2021), fragmentos do trabalho foram apresentados virtualmente em um projeto coletivo contemplado pela Lei Emergencial Aldir Blanc. Em 2022, a dramaturgia ganhou novas camadas com a colaboração do escritor, jornalista e dramaturgo Denio Maués. No ano seguinte, o autor explorou ainda mais as questões do “feminino” em sua obra, ao lado de dez artistas-criadoras. Em 2024, já com a direção conjunta de Alejandra Sampaio e Malú Bazán, o trabalho avançou com uma abertura de processo para cerca de 15 pessoas, entre colaboradores, artistas e não-artistas.
Agora, em 2025, Primavera Cega chega ao palco como resultado de um processo de anos de pesquisa, muitos encontros, atravessamentos e transformações. Um espetáculo solo que carrega não apenas um esforço individual, mas de toda uma rede de afetos que acredita na potência da arte.

